Como nasce este projeto

A criação se desdobra no trabalho porquanto este traz em si a necessidade que gera as possíveis soluções criativas. Nem na arte existiria criatividade se não pudéssemos encarar o fazer artístico como trabalho, como um fazer intencional produtivo e necessário que amplia em nós a capacidade de viver.
Fayga Ostrower[1]
Na trajetória do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da Universidade Federal de Santa Catarina vinculado ao Centro de Educação (UFSC-CED), sempre houve uma preocupação com a formação e a produção artístico-cultural das crianças que ali são educadas e cuidadas de forma indissociável e em parceria com suas famílias. Uma atenção expressa, por exemplo, na busca constante por propostas e projetos pedagógicos que contemplem formas diferenciadas de atuar com as crianças, de escutá-las e registrar suas idéias, perceber suas ações, compreender suas atuações e produções em diferentes linguagens. Registros estes que, ao serem selecionados, organizados, analisados e interpretados subsidiam reflexões, avaliações e (re)encaminhamentos de propostas e projetos junto às crianças[2]. Igualmente, é a atenção constante dos profissionais que atuam (direta ou indiretamente) com as crianças no NDI para com a promoção contínua dos princípios estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Resolução CNE/CEB 5/2009) em seu Art.6º, e que devem ser contemplados nas propostas pedagógicas na Educação Infantil. Falamos aqui, dos princípios:

 I – Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades.
 II – Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática.
 III – Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais (Resolução CNE/CEB 5/2009)[3].

É dentro desta perspectiva que, no segundo semestre de 2010, a direção, pedagogas e demais profissionais que atuam no NDI retomaram a discussão sobre o muro de divisa da instituição com a comunidade. Naquele momento, o muro foi percebido como um espaço ainda não convidativo e promotor de experiências estéticas ou da construção de identidades artístico-culturais de crianças e adultos. Simultaneamente a esta percepção, emergiram os primeiros movimentos da direção da instituição juntamente com Gilberto Lerina para convidar artistas da nossa Ilha e do continente, a apresentarem propostas de visualidades a serem por eles pintadas no muro.
Para surpresa deste grupo de profissionais do NDI, muitos artistas acabaram apresentando projetos com imagens (figura 1) que em nada se aproximavam do seu trabalho de grafiteiro, motivo pelo qual haviam sido escolhidos para esta produção. Percebendo a demanda artística e técnica da proposta, o grupo passou a discutir a mesma com a arte-educadora Vania Broering.
Com a entrada da Vania no grupo é retomada a busca por artistas que poderiam desenvolver o trabalho. Um dos artistas contatados, ao receber o convite para pintar um muro localizado dentro de uma instituição de educação infantil se manifestou da seguinte forma: - “Ah, sei...vocês querem uma pintura como a da escola” [indicando a instituição próxima ao seu local e trabalho]. Mas o que são pinturas de escola? Considerando os projetos que  foram apresentados, a cultura visual de imagens “pré-fabricadas” (CALVINO, 1990) que reina em nossa sociedade, as decorações (internas e externas) que encontramos em muitas instituições de educação infantil[4], podemos dizer que “pinturas de escola” seriam aquelas que reafirmam uma “estética hegemônica” fortemente pauta em imagens das grandes corporações de entretenimento voltadas à infância (CUNHA, 2010, p.127)[5]. Ou seja, imagens que operam na direção de uma homogeneização dos modos de crianças e adultos olharem, pensarem e de atuarem sobre o mundo. No entanto, isso era – e ainda é – justamente o que o NDI buscava (busca) desconstruir.
Figura 1 - imagens das propostas apresentadas por artistas na 1a fase do projeto em 2010.
Soma-se ao já explicitado o fato de que alguns artistas, que voltaram ao NDI para saber do andamento da proposta, se mostraram surpresos quando lhes foi comunicado os motivos da “demora” na finalização da avaliação das suas propostas: a criação de um projeto para pintar o muro do NDI. Para artistas acostumados a criar visualidades em fachadas públicas, muros e paredes abandonados, que constroem relações com a cidade que rompem com o instituído não faz mesmo sentido pensar num projeto. Neste momento, o grupo mais uma vez percebe que a conversa, o convite para os artistas deveria ser feito de outra forma, mas como? No entanto, mesmo não conseguindo estabelecer um diálogo mais próximo com estes artistas, suas visitas ao NDI para conhecer o muro o qual receberia a pintura, teve uma grande contribuição para o nosso trabalho, pois ao analisarem as condições estruturais da superfície em tijolos, eles indicaram a necessidade – para uma maior durabilidade do trabalho artístico – de refazer o reboco do mesmo.
 
 Imagens da revitalização do muro do parque dos fundos do NDI - divisa com a comunidade externa da UFSC

Considerando a trajetória até então construída e a complexidade do trabalho, o grupo convida outras professoras e pesquisadoras do campo da arte e da educação da infância para pensarem o trabalho a ser realizado. Deste modo, Vania Broering (NDI/CED/UFSC), Gilberto Lerina (NDI/CED/UFSC) e Alessandra Mara Rotta de Oliveira (MEN/CED/UFSC) passam a coordenar este trabalho em meados do mês de outubro de 2010. Este grupo também mantém um importante e profícuo diálogo com a professora Maria Cristina Alves dos Santos Pessi do Departamento de Artes Visuais da UDESC e supervisora dos estágios desta área na educação infantil. Esta nova composição permite instaurar no processo de trabalho procedimentos de pesquisa com crianças, sobre arte e o fazer poético num contexto de educação infantil. Nascia assim, o PROJETO ARTE NO MURO – uma tela a céu aberto.
Novos encontros da coordenação são realizados e nestes é dado início a um percurso permeado por pesquisas bibliográficas e imagéticas, estudos teóricos e debates sobre arte contemporânea, arte infantil, educação infantil, educação estética e produção cultural das e para as crianças. Este movimento possibilitou que o grupo construísse um olhar sensível para a produção artística inscrita nos muros – seja ela grafite, colagem, escrita, desenho, escultura em alto ou baixo relevo etc. –, uma vez que ela “nos possibilita (re)descobrir o espaço urbano em suas dimensões estéticas e culturais, compreendendo a cultura urbana pelo viés das produções artísticas, através do lúdico,  do  jogo,  da  imaginação  e  dos  sentimentos  manifestados” (BRANDÃO, 2010, p.02). Do mesmo modo, permitiu a construção de novas perspectivas para o trabalho no qual a atuação conjunta de artistas e crianças passa a ser um componente fundamental.
Outrossim, foi a emergência de tantos novos desafios para o grupo diretamente envolvido: o que as crianças têm a nos dizer sobre  arte ou “arte no muro”? O que elas gostariam de ver, criar nos muros do NDI? Como transformar um muro em uma tela a céu aberto, de forma significativa, profícuo para a expressão lúdica, para a imaginação criadora das crianças? Que novas visualidades, poéticas e identidades artístico-culturais poderiam ali ser criadas, divulgadas, apreciadas e questionadas por crianças e adultos? Como promover encontros éticos, estéticos e lúdicos entre artistas e crianças pequenas? Que materialidades e instrumentos empregar neste processo? Como apresentar, dialogar, refletir sobre arte urbana com crianças pequenas de forma ampliar suas compreensões sobre ela, assim como promover intencionalmente processos de criação no campo das artes visuais sem “didatizar” o processo?
Considerando a trajetória e as indagações descritas anteriormente, foram traçados os seguintes objetivos para o trabalho que iniciou em 2010, mas não há data limite para sua finalização:
Construindo histórias&poéticas os objetivos do projeto:

- promover o encontro e a produção artística entre artistas plásticos, crianças e professores(as) do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da UFSC, tendo como suportes privilegiados para criação os muros da instituição;
- fortalecer e expandir as forças da imaginação e da criação poética das crianças no campo das artes visuais, oportunizando novas experiências plásticas e sensíveis, assim como ampliando e diversificando seus encontros com a arte e a cultura urbana;
- alargar e aprofundar os estudos e o debate entre os envolvidos no projeto sobre arte, as experiências sensíveis e a produção plástica das crianças pequenas nos contextos de educação infantil;
- desenvolver, registrar, analisar e divulgar o encontro e as criações de artistas, crianças, professores(as) e demais profissionais do NDI envolvidos no projeto, visando à construção de práticas pedagógicas significativas para as crianças.


[1] OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1987, p.31. (17ª Edição)
[2] Para um aprofundamento na compreensão deste processo indicamos a leitura de GANDINI, Lella e GOLDHABER, Jeanne. Duas reflexões sobre a documentação. In: GANDINI, Lella e EDWARDS, Crolyn (orgs.). Bambini: a abordagem italiana à educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 2002, p.150-169.
[3] Resolução do Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica N.05, de 17 de dezembro de 2009 – Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12992:diretrizes-para-a-educacao-basica&catid=323:orgaos-vinculados
[4] Para saber mais sobre o assunto ver em: CUNHA, Susana Rangel V. da. Cenários na Educação Infantil. Disponível em: seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/download/12451/7365 Acessado em:12/09/2010
[5] CUNHA, Susana Rangel V. da. Cultura visual e infância. In: ICLE, Gilberto (org.). Pedagogia da arte: entre-lugares da criação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010, p.103-133.